6 – VOLTAR AO PASSADO PARA ENTENDER MELHOR O PRESENTE.


CORONÉIS DE BARRANCO.
Com o inicio da demanda da borracha no mundo industrializado, os empresários seringalistas ou “coronéis de barranco” estabeleceram na Amazônia um sistema de semi-escravidão capitalista. Eles obrigaram grande parte da população indígena de forma violenta a trabalhar para eles, transformando-os em “caboclos seringueiros”. Os trabalhadores nordestinos, que vieram para a Amazônia em busca de emprego, caíram logo na dependência econômica dos seringalistas e se tornaram os “seringueiros nordestinos”.
Durante a Segunda Guerra Mundial houve um segundo ciclo de produção da borracha no Brasil, visto que os seringais da Malásia, principalmente, estava sobre o poder das forças alemães. Por isso, e em virtude do aumento da demanda pelo produto para ser usado na guerra, houve a retomada da exploração gomífera na Amazônia, habitat natural da Hevea brasiliensis. O termo "Soldados da Borracha" surgiu pelo fato de que os brasileiros sujeitos ao serviço militar tinham que escolher entre lutar na guerra ou trabalhar como seringueiro na Amazônia e muitos preferiram vir para a Amazônia ou forçados pela circunstancias, devido a guerra já em fase final, a ir para a Europa (Itália) lutar na guerra. Assim ficaram conhecidos como Soldados da Borracha. Esses Soldados da Borracha nunca conseguiram voltar para sua terra natal. Primeiro porque foram enganados pelo governo federal que prometeu que logo que terminasse a guerra, alem de receberem uma indenização por terem prestado serviço a Pátria, teriam a garantia de voltar para o Nordeste e segundo porque a grande maioria foi engana ou mortas pelos seringalistas (Coronéis de Barranco) que nunca pagaram honestamente o saldo desses Heróis da Pátria.  Com o fechamento dos seringais, devido a retomada da produção dos seringais da Ásia e a concorrência internacional do produto, os (Soldados da Borracha) seringueiros ficaram entregues a própria sorte. Até hoje, sobrevivem trabalhando na terra ou outras atividades rústicas, pois a maioria não encontrou outra forma de vida na região.
Unidade hospitalar de Envira

N

o capítulo anterior abordamos questões referentes ao início do processo de ocupação do espaço urbano do município nas primeiras décadas após sua criação oficial. Tal abordagem nos remete a um entendimento mais profundo dos fatos e acontecimentos passados numa reconstrução histórica, fundamental para que tenhamos uma visão mais ampla que nos permita compreender e interpretar o contexto em que tais acontecimentos ocorreram e entender melhor os contextos subseqüentes. Assim, estudar a História mesmo em seus aspectos mais gerais é ter a oportunidade de conhecer as fases ou etapas de sua construção, transformação, mudanças e as lutas travadas entre o homem e o ambiente hostil e inclemente no seu primarismo, onde a ação humana objetiva a transformação a partir de suas necessidades, na busca constante para alcançar o crescimento material e cultual para si e, também, deixar como legado para as gerações posteriores como marcas de sua cultura. 
Igreja Matriz Nossa Senhora do Perpetuo Socorro

Dessa forma, foi imprescindível buscar o conhecimento dos aspectos históricos que, pela sua dimensão e relevância, demonstraram-se mais significativos, balizadores da trajetória de ocupação e construção do espaço municipal. A partir do estudo dessa trajetória tornou-se primordial construir o conjunto dos fatos e acontecimentos correlatos ao processo histórico que marcou o período de ocupação do espaço urbano municipal. Sabemos que a História tem a função de mostrar e explicar as ações processadas pelo homem para a construção do espaço geográfico, ou seja, transformar o ambiente de acordo com as necessidades de cada uma das sociedades. As experiências acumuladas ao longo dos anos nos ensinam a viver melhor o presente e a compreender melhor as situações vividas ou presenciadas.
    É com essa intenção que lançamos um olhar investigativo e crítico sobre a História do município de Envira nos seus vários aspectos e fases de construção do ambiente que abrigou e que abriga sua população. O papel que a sociedade desempenhou para desenvolver, no município, novas formas de convivência humana, nem sempre percebidas devido à quase imperceptível mudança ocorrida e que teve como resultado novos valores culturais próprios das situações das relações estabelecidas no meio, no envolvimento brutal do homem com a natureza, da dependência desta e do domínio exercido pelo meio físico sobre a sociedade que se formou.
A natureza sempre imperou absoluta, regulando ou impedindo as vestidas realizadas pelo homem para dominar o espaço físico-geográfico. Sempre imponente, majestosa e até certo ponto cruel, do ponto de vista da adaptação, a natureza foi quem determinou o ritmo de desenvolvimento da região. A natureza, condicionante da vida na região, não deu margem à ampliação cultural de outras atividades produtivas e nem ao surgimento de outras relações sociais senão aquelas já estabelecidas.
Diante desse processo de condicionamento o homem se viu incapacitado para realizar suas atividades transformadoras que significasse a imposição de sua vontade, através de iniciativas que fossem capazes de propiciar uma nova situação de vida, principalmente no âmbito econômico, sobretudo porque o município de Envira foi durante muito tempo, para os que definiam a ampliação das políticas públicas, planos de ações e projetos de desenvolvimento uma ilha perdida e impenetrável sem um único canal de acesso. Sua economia tinha como base a produção extrativa: a coleta dos produtos naturais. Era através dessa atividade que a população obtinha os recursos indispensáveis à sobrevivência, era também nesse campo de atuação – o do extrativismo – que se processavam as relações sociais. As atividades agrícolas não iam além de uma pequena roça sem excedente, produziam apenas para o consumo de suas famílias em tão pequena escala que chegava a faltar algumas vezes durante o ano. As técnicas rudimentares de produção não ofereciam condições de obterem uma quantidade mais expressiva de produtos. O processo econômico do município ainda permanecia dentro da disciplinação condicionada pela natureza (TOCANTINS, 1982). Esse aspecto disciplinatório perdurou por muito tempo, comandou a vida econômica e deu à tônica das relações sociais.
Sobre o aspecto acima referido um ex - seringueiro ressalta o seguinte:
“Não dava pá cortar seringa e prantar por isso a gente fazia só um roçadim, quem cuidava era a muié marrus minino, só ia lá condo não ia pá estrada. Prantava só pá comê, era macaxeira, banana, mii, batata, cana, malancia, jirimum, arroz, feijão... era tudo poquim mai dava pá gente comê, né”, Raimundo, entrevista concedida em 14/06/2004).
   Havia entre a maioria da população um comércio de troca do que era produzido, uma espécie de solidariedade, onde um cedia ao outro algumas provisões alimentares, como empréstimo ou doação, não eram cobrados juros, a devolução se fazia quando aquele que emprestara, ou doara, achava-se desprovidos de alguns gêneros para o seu consumo. Assim, vivia a população ribeirinha, se ajudando mutuamente. Essa prática também foi constatada no núcleo urbano, transferida com a mesma disciplinação exercida na zona rural (era muito comum na região a prática da vizinhança, as pessoas que moravam próximas dividiam o que tinham como alimento com os seus vizinhos e vice-versa). Sobre esse aspecto um antigo morador diz o seguinte:
“Naquela época a gente ajudava uns aos outros, se um tivesse todos tínham, nós vivia na mesma situação, ninguém tinha dinheiro por isso não vendia emprestava ou dava e quando não tinha tomava emprestado também, tanto fazia ser o peixe, a carne, a farinha... naquele tempo era bom de rancho” (José, entrevista concedida em 14/07/2004).
  Quanto ao aspecto político verifica-se que a população vivia em total obediência às ideologias da elite dominante. A sociedade, formada, na sua maioria por gentes simples com pouco aletramento, mas de boa fé, tendo apalavra como garantia de seu caráter, era facilmente dominada, envolvida e conduzida pelo processo alienatório dos grupos dominantes para manter o apoio a certos grupos políticos entendido para estes (a população) como direito e dever pelo bom tratamento presencial, alguns direitos concedidos como favor, etc. Não temos informações de que em algum momento tenha havido algum movimento de reação à dominação política ou a situação econômica instalada desde os primórdios da ocupação nordestina na região.
Esse tipo de estrutura organizacional que se instalou no município, até pela própria estrutura socioeconômica, contribuiu para promover a estagnação dos setores de desenvolvimento de caráter econômico e a afirmação de outras atividades no âmbito das interrelaçoes homem – natureza.
TOCANTINS, (1982, p.22): “Uma sociedade que foi influenciada pelas forças seletivas, distribuidoras e acomodativas do meio, e na qual houve um intenso processo de cooperação competitiva, entre as diversas unidades individuais de população humana, de espécies vegetal e animal, que se movimentam no espaço físico”.
As administrações públicas (políticas) que nortearam ou dinamizaram as medidas adotadas nas primeiras décadas de existência do município contribuíram consciente ou inconscientemente para o continuísmo das tradições arcaicas, colonialistas e exploradoras do trabalho humano e, por outro lado, um paradoxo, expressado na atuação desses processos e verificado entre as várias espécies num intenso conflito entre o homem e o meio no processo de dominação e/ou transformação do ambiente natural.
Como já foi dito em páginas anteriores deste estudo a criação oficial da cidade de Envira em nada, ou quase nada, alterou a estrutura socioeconômica já estabelecida nas unidades produtoras de borracha – os seringais – e a montada ou trazida para a cidade aonde veio, mais uma vez, orientar as relações do novo ambiente. É a partir dessa estrutura que podemos perceber o grau de evolução atingido pela sociedade durante esses anos de formação histórica e o sentido de sua trajetória em busca do desenvolvimento
Segundo Prado Júnior, (1997, p.19): “O sentido da evolução de um povo pode variar; acontecimentos estranhos a ele, transformações internas profundas de seu equilíbrio ou estrutura, ou mesmo ambas estas circunstâncias conjuntamente, poderão intervir, desviando-o para outras vias até então ignoradas”.
São esses caminhos, muitas vezes ignorados, ou que não são levados em conta, quando se analisa a evolução de uma sociedade achando que sua influencia é tão insignificante que não interfere no processo de evolução, como os meios para sobreviver, as atividades desenvolvidas como forma de integração do homem ao meio, instrumentos e formas de adaptação conforme as peculiaridades do ambiente, ou ainda, a necessidade de mudança na sua estrutura interna e externa, por conta de acontecimentos que exigem a revisão de suas bases estruturais.
É nessa perspectiva que o sentido da evolução de povo deve ser analisado. No caso específico da região em referencia a população desenvolveu, a seu modo e conforme as condições do meio, formas características de vida numa integração necessária aos aspectos da natureza as quais não podiam se sobrepor, pois destes dependiam e eram por eles disciplinados.
O abandono em que se encontrava a região, por parte do pólo dominante, nacional e estadual, por um lado contribuiu para o baixo desenvolvimento socioeconômico, por outro abriu espaço para a população seguir outras vias já que esta, desde sua radicalização se empenhava na luta desbravadora da floresta em busca de adaptação e de uma melhor forma de vida. Diante de tais circunstâncias a população teve que buscar formas criadoras e aperfeiçoadoras de conceitos formulados a partir da necessidade de criar instrumentos, objetos, desenvolverem novas atividades e uma linguagem que se encaixasse perfeitamente a essas criações. Inúmeras são as invenções do homem na região através da imaginação fertilizada pela necessidade de encontrar formas de autossustentação e de sobreviver aos perigos do meio.
Suas produções culturais foram necessárias, indispensáveis e primordiais a vida na região. A matéria prima encontrada, com certa abundancia, foi transformada em instrumentos e objetos que viabilizaram a realização e várias atividades criadas ou preservadas dos nativos. Muitos desses instrumentos foram invenções, outros, no entanto foram aperfeiçoadas para se ajustar melhor as peculiaridades do meio. Não podemos aceitar ou simplesmente concordar com o que dizem sobre o homem amazônico: que o atraso socioeconômico da região é fruto de sua incapacidade em desenvolver-se ou mesmo chegar ao progresso, isto é, transformar os recursos naturais em riqueza para a região. Muitas mentes privilegiadas e mãos habilidosas contribuíram grandemente, com suas idéias e criações, para o processo de evolução das sociedades amazônicas, como afirma TOCANTINS: “O que há de criações humanas na Amazônia, o que se poderá ainda realizar, é argumento decisivo contra as arcaicas teorias de um ambiente contrário às produções do espírito nas zonas tropicais” (1982, p.165).  
Dentro de suas possibilidades e do que lhes permitia o meio hostil a população do município desenvolveu formas próprias de viver em harmonia com o ambiente, mas criando um conjunto de ações, mesmo não dispondo de um nível educacional elevado ou razoável e conhecimentos sanitários ou mesmo um nível técnico que oferecesse a possibilidade de criar, formular ou adquirir paradigmas viabilizadores da ocupação do espaço em um aspecto mais moderno de desenvolvimento em todos os níveis de necessidades do homem. É certo que o isolamento a que foram submetidos, principalmente nos âmbitos econômico e social, os condicionou a viver sempre à margem da modernidade e do progresso, mas esse particular não os tornou inferiores ou incapazes de produzir, dentro do que era permitido, por imposição do meio tanto o natural quanto o humano e, é claro, a partir de suas necessidades. Vale ressaltar que cada povo evolui de acordo com os parâmetros atingidos, ou alcançados pela sociedade, que atingiram os recursos humanos por ela disponíveis.
            A população do município de Envira, embora não tenha atingido um estágio de progresso avançado e um nível, pelo menos razoável de bem estar social, lançou mão daquilo que tinha e lhes permitia sobreviver para promover o seu desenvolvimento. Foi com luta, com sangue, com vidas, enfim, com muito esforço que conseguiram sobreviver aos infortúnios que vão desde o ambiente hostil natural até os problemas relativos à ausência de políticas públicas para a região. Foi graças à coragem de seus desbravadores, os primeiros habitantes da região (nativos, seringueiros, seringalistas), principalmente no que se refere à questão do desbravamento e a abertura da fronteira natural para a ocupação humana que outros povos e as gerações posteriores puderam habitar a região. É fato que já havia, no entanto, um caminho aberto e sua parte mais íngreme já percorrida, que foi a grande empreitada para descobrir formas de adaptação e sobrevivência na grande imensidão verde, assim como o estabelecimento de relações de interdependência com os elementos naturais e com os diversos seres que compunham o meio ambiente e que, portanto formavam o ecossistema da região.





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